Elas são capazes de mexer com nosso estado nutricional, comportamento e suscetibilidade a doenças
Fernanda da Costa
Eles
chegam para colonizar nosso corpo desde que nascemos. Somos uma morada
gigantesca e acolhedora onde podem crescer, alimentar-se e se
reproduzir. São microrganismos como bactérias, vírus e protozoários que
carregamos por toda a vida. O conjunto deles é chamado de microbiota e
tem o poder (ainda pouco conhecido) de mexer com a nossa saúde.
Cientistas
estimam que o corpo humano carrega milhares de espécies desses
microrganismos, em sua maioria bactérias. Somados, eles representam
aproximadamente um quilo do peso de um adulto. Apesar de "leves", a
importância desses seres microscópicos na nossa vida é imensa:
pesquisadores estimam que temos mais células de micróbios que as nossas
próprias no organismo.
Somos
ainda mais insignificantes se levarmos em conta os genes microbianos
que hospedamos: cem vezes mais do que os nossos. Isso equivale a dizer
que somos feitos 99% de genes microbianos e apenas 1% genes humanos.
Mas
esses microrganismos não estão em todas as partes do nosso corpo.
Habitam somente órgãos que tenham contato com o ambiente externo, como
pele, olhos, boca, tratos respiratório, gastrointestinal e
geniturinário. A maioria dos micróbios mora no trato gastrointestinal
(70%), o mais estudado até hoje.
A população de seres
microscópicos que habitam nosso corpo pode ser influenciada por fatores
como microbiota materna, tipo de parto em que nascemos, higiene, idade,
alimentação, exercício físico, genética, medicamentos e estado hormonal.
Sem deixar por menos, eles influenciam o estado nutricional,
comportamento e suscetibilidade a doenças — isso porque interferem na
digestão, na assimilação de nutrientes, na síntese de vitaminas e na
formação do sistema imunológico.
Embora a existência de micróbios
no nosso corpo seja conhecida desde que o holandês Antonie van
Leeuwenhoek (1632-1723) descobriu grande número de minúsculos seres
vivos em um raspado da superfície de um dente — ao observá-lo em
microscópio —, os estudos sobre o papel da microbiota ainda são muito
recentes. De 1990 a 2009, as publicações anuais sobre o tema saltaram de
cem para 500, aproximadamente.
Por isso, não há muitas
comprovações sobre a influência da população microscópica. Estudos
indicam a associação da microbiota com doenças intestinais, câncer,
obesidade, diabetes, alergias respiratórias, doenças psiquiátricas e até
autismo. Os problemas ocorreriam quando o conjunto dos nossos micróbios
é afetado ou alterado.
A questão é que os cientistas ainda não
sabem definir o que é uma microbiota saudável para poder produzir
tratamentos. Doutor em Microbiologia e pesquisador em Saúde Pública na
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luis Caetano Martha Antunes afirma que esse é um grande desafio de quem estuda o tema.
Quando
isso for definido, o pesquisador aguarda um futuro com coquetéis de
bactérias para tratar doenças relacionadas à microbiota.
Cesárea altera micróbios e aumenta risco de obesidade
A
relação entre o corpo humano e esses microrganismos começa no momento
do nascimento. Durante o parto normal, o bebê é colonizado pelas
bactérias presentes na vagina da mãe. Já a cesariana estimularia o
crescimento de micróbios que entram em contato com a pele da criança, o
que faz com que ela tenha uma microbiota diferente. Divulgada há cerca
de dois anos, uma revisão de 15 estudos envolvendo
163.796
pessoas mostrou que nascidos pela cirurgia tinham um risco 26% maior de
ter sobrepeso e 22% maior de se tornar um adulto obeso por causa dessa
alteração na microbiota.
A gastroenterologista pediátrica Helena
Ayako Sueno Goldani, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, apontou a tendência à obesidade de bebês que
nasceram por cesariana em um artigo publicado em 2011 pelo The American
Journal of Clinical Nutrition. O estudo levantou a hipótese de que as
bactérias presentes no canal vaginal da mãe poderiam afetar
positivamente o metabolismo.
Em abril deste ano, a pesquisadora
publicou um novo artigo sobre o tema, que acrescenta outro fator à tese.
Ao comparar fezes de nascidos por cesárea e parto normal, o trabalho
mostrou que não há grandes alterações nas bactérias.
—
Investigamos as mães das crianças e vimos que, quando a mulher é obesa
antes de engravidar, isso influencia na microbiota da criança. A nossa
conclusão é de que devemos olhar também para o peso materno antes da
gestação, não apenas para o tipo de parto — afirma.
Alimentos gordurosos favorecem bactérias "do mal"
Publicado
em 2013 pela revista Science, um estudo desenvolvido pela equipe do
pesquisador norte-americano Jeffrey Gordon, da Universidade de
Washington, mostrou que as bactérias presentes em nosso intestino
influenciam no metabolismo. No trabalho, camundongos que receberam em
seu intestino bactérias do intestino de pessoas obesas ganharam mais
peso do que aqueles que tiveram injetados micróbios de indivíduos
magros, seguindo a mesma dieta.
Para determinar quais
microrganismos impediram o ganho de peso, os pesquisadores confinaram os
roedores obesos e magros na mesma gaiola, onde começaram a consumir os
excrementos uns dos outros — transmitindo entre si bactérias da
microbiota intestinal. Após cerca de 10 dias, os cientistas descobriram
que os animais acima do peso tinham desenvolvido os mesmos traços
metabólicos dos magros. Já bichos em forma não foram afetados pelos
micróbios intestinais de seus companheiros de cela. Enquanto bactérias
do filo Bacteroidetes conseguiram entrar no intestino dos camundongos
obesos e provocar mudanças em seu metabolismo, nenhuma das bactérias dos
roedores gordos conseguiu invadir o intestino dos magros.
Em
seguida, os cientistas alimentaram esses animais com o equivalente a
duas dietas modernas: a primeira rica em fibras e pobre em gorduras
saturadas e a segunda, pobre em fibras e rica em gorduras. Quando
submetidos a um regime saudável, os roedores obesos adquiriram boas
bactérias intestinais, modificando seu metabolismo. Mas quando os dois
grupos de ratos foram alimentados com uma dieta pobre em fibras e rica
em gordura saturada, os obesos não conseguiram adquirir as bactérias
intestinais que impedem o ganho de peso, e os magros não conseguiram
mantê-las no intestino. Ou seja: a dieta desequilibrada muda a nossa
microbiota para pior.
Uma das organizadoras do livro Microbiota
Gastrintestinal — Evidências da sua Influência na Saúde e na Doença, a
professora do Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal
de Viçosa (UFV) Maria do Carmo Gouveia Peluzio afirma que nossa
microbiota é habitada tanto por bactérias benéficas quanto não
benéficas, que vivem em equilíbrio. No entanto, a má alimentação pode
desregular a harmonia entre elas e favorecer o desenvolvimento de
doenças como obesidade, diabetes e câncer. Isso porque as bactérias boas
metabolizam comidas saudáveis, e as más se alimentam de gordura. Quando
comemos apenas alimentos gordurosos, estamos multiplicando a população
de micróbios ruins no nosso organismo.
— A formação das doenças
crônicas começa por causa dessa alteração, quando nosso intestino vai
sendo colonizado por bactérias patogênicas, em vez de benéficas —
explica a professora.
Dieta para ajudar os microrganismos
Depois
da descoberta de que a microbiota altera o funcionamento do metabolismo
e de que cuidar das nossas bactérias pode ser uma forma de tratamento
para várias doenças, diversos pesquisadores passaram a estudar o uso de
prebióticos e probióticos na alimentação.
Os prebióticos são
fibras não-digeríveis, que funcionam como alimento para as bactérias
benéficas. São encontrados em alimentos como frutas, vegetais, grãos,
sementes e cereais.
A ingestão ideal de fibras varia de 20 a 30
gramas por dia. Já os probióticos são as próprias bactérias do bem,
comumente adicionadas às bebidas lácteas ou iogurtes.
— O consumo
de prebióticos e probióticos melhora o trânsito intestinal e pode
provocar perda de peso. Também melhora a qualidade do sono e a
disposição. Temos estudos com animais que mostram ainda a redução da
pressão e da glicose — explica a professora da UFV Maria do Carmo
Gouveia Peluzio.
Também é possível encontrar prebióticos ou
probióticos em medicamentos. O problema é que, tanto naturais quanto em
remédios, o efeito deles é "passageiro", o que exige um consumo
frequente. Além disso, para algumas pessoas, eles não produzem o
resultado desejado.
Antibióticos podem desregular microbiota
A
pesquisadora indica o consumo de prebióticos e probióticos após a
ingestão de antibióticos. Como esses medicamentos são capazes de matar a
microbiota, os prebióticos e probióticos podem ser usados para
reconstrução da nossa população de bactérias.
Contraindicado
justamente por afetar nossos microrganismos, o uso de antibióticos com
frequência pode favorecer infecções oportunistas. Um exemplo é a
reprodução de uma bactéria patogênica chamada Clostridium difficile,
resistente a medicamentos. Como os antibióticos acabam matando as
bactérias boas, pode sobrar espaço para a malvada se multiplicar,
causando uma infecção que pode ser fatal: a colite pseudomembranosa.
Transplante de fezes é opção de tratamento
Como
o tratamento com antibióticos muitas vezes é ineficiente para a
Clostridium difficile, nesses casos é indicado o transplante fecal.
A
prática consiste na transferência da microbiota presente nas fezes de
um indivíduo saudável para o doente, por meio de sonda nasogástrica,
endoscópio, colonoscopia ou enema. Professor do Departamento de
Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
da Universidade de São Paulo (USP), Christian Hoffmann afirma que o
índice de cura com o primeiro transplante é de ao menos 80%, chegando a
100% com um segundo transplante, quando necessário.
Nos Estados
Unidos, pesquisadores chegaram a produzir um banco de fezes, chamado
Open Biome, que criou uma cápsula contendo a microbiota. O medicamento
pode substituir o transplante.
Bactérias regulam sistema imunológico
Além
de auxiliar na digestão, a microbiota funciona como uma professora para
o nosso sistema imunológico. Como os microrganismos mostram substâncias
às nossas células imunológicas, elas podem conhecer o que não é ligado a
doenças, reagindo apenas nos casos necessários.
— Nosso sistema
imunológico não nasce pronto, ele passa por um processo de aprendizado
nos primeiros anos de vida, entrando em contato com as bactérias do
ambiente e da microbiota, para entender o que não é patológico — explica
Christian Hoffmann, professor da USP.
É como se a microbiota
tivesse a função de regular a atividade do sistema imune, por isso, há
estudos relacionando doenças resultantes da alta atividade imunológica
como rinite e asma com as alterações na nossa população de
microrganismos. Professora da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e da Faculdade de Medicina do ABC, a especialista em alergia e
imunologia Márcia Carvalho Mallozi explica que qualquer alteração da
microbiota que mostre redução de bactérias benéficas ou aumento das
patogênicas pode provocar doenças em pessoas geneticamente suscetíveis.
— A microbiota ajuda a produzir substâncias que interferem na produção de células de defesa — afirma Márcia.
Zero Hora
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