Saem as brincadeiras no quintal, entram os apartamentos. Saem as praças
e parques, entram os prédios. Saem os jogos na rua, entram os tablets e
videogames.
Basta um olhar rápido para perceber que nas grandes e médias cidades o
contato das crianças com a natureza, em geral, vem diminuindo.
E para o americano Richard Louv, autor de
A Última Criança na Natureza
, essa constatação em nada tem a ver com um saudosismo barato. Mas sim
com os impactos negativos causados pelo o que ele chama de Transtorno de
Deficit de Natureza.
Em visita a São Paulo para o lançamento de seu livro, Louv contou à BBC
Brasil que ele começou a se interessar pelo tema no início dos anos 90,
quando fazia pesquisas para seu livro
Childhood's Future
("O Futuro da Infância", em tradução livre).
"Entrevistei mais de 3 mil pais e professores. Queria saber deles sobre
como o cenário da infância estava mudando. E uma constante nos
depoimentos foram pais reclamando de que não conseguiam tirar seus
filhos de casa. Mesmo se morassem perto de áreas verdes ", disse.
"Na época, não haviam estudos sobre a aflição desses pais. Somente há
menos de 10 anos surgiram as primeiras pesquisas sobre isso - e todas
apontam para a mesma direção: a falta de contato das crianças com a
natureza causa problemas físicos, como a obesidade, e mentais, como
depressão, hiperatividade e deficit de atenção."
Louv, no entanto, vai além do cenário triste que pinta para as crianças
dos dias atuais: ele também aponta medidas simples que pais,
educadores, médicos e o poder público podem adotar para evitar o
"deficit de natureza" até mesmo em grandes metrópoles. Confira os
principais trechos da conversa:
BBC Brasil: Ainda há esperança para as crianças que vivem em cidades como São Paulo ou outras do estilo "selva de pedra"?
Richard Louv:
(Risos). Sim, é claro que há esperança! Vi experiências muito
interessantes em cidades na China e também em Atlanta, Chicago e em
outras metrópoles americanas que podem ser comparadas com as
brasileiras.
São escolas e associações que estão usando hortinhas, caminhadas em
bosques e outras soluções simples para combater uma série de novos
problemas que atingem muitas das crianças de hoje, por estarem tão
afastadas da natureza.
BBC Brasil:
Quais exatamente são esses novos problemas? São físicos ou mentais?
Richard:
Os dois. Na parte física temos, por exemplo, a obesidade infantil, que
hoje é epidemia em vários países mundo afora, inclusive, até onde eu sei
no Brasil. (47% das crianças brasileiras têm com excesso de peso ou são
obesas).
As crianças hoje passam menos horas ao ar livre e, consequentemente,
mais tempo confinado em casa, vendo TV ou jogando videogame. Essa é uma
das grandes causas da obesidade infantil. Meninos e meninas que ficam na
frente de telinhas são menos ativos do que os que correm no parque,
sobem em árvores...
BBC Brasil: E os transtornos psicológicos?
Richard:
São muitos e são novos. Porque até a poucos anos atrás, era raro os
pediatras atenderem crianças bem novas com sintomas de depressão. Também
posso citar transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH),
além de problemas cognitivos.
BBC Brasil: Como a natureza pode amenizar esses problemas?
Richard:
Hoje, há muitos estudos mostrando que contato com a natureza - ainda
que pequeno e por pouco tempo - podem reduzir os sintomas desses
distúrbios.
Uma pesquisa de um grupo na Universidade de Chicago que estuda
distúrbios de atenção entre crianças comprovou que meninos e meninas de 5
anos tiveram uma melhora significativa com caminhadas curtas em
parques.
Pesquisadores da Universidade de Essex também mostraram impactos
psicológicos mensuráveis em adultos depois de apenas cinco minutos
andando entre árvores. Porque adultos, obviamente, também se beneficiam
do contato com a natureza.
BBC Brasil: Você acha que conviver com a natureza é mais eficiente do que receitar remédios?
Dicas simples para pais com vidas corridas:
- Leve seu bebê para passear em áreas verdes - um ótimo antídoto para acalmar os pequenos e reduzir o estresse dos pais
- Deixe seu bebê se fascinar com a grama, as pedrinhas, as poças d'água. Não se preocupe por ele se sujar.
- Com crianças já maiorzinhas, faça uma trilha simples e deixe que elas liderem o caminho em trechos conhecidos. Levar um walkie-talkie pode ser divertido também.
- Chame amigos para fazer passeios juntos pela natureza. Isso cria vínculos e diminui a sensação de insegurança para quem tem essa preocupação
- Observe o céu em um dia estrelado
- Faça festas e piquineques ao ar livre
- Brinque de coletar folhas, galhos e afins para decoração ou para atividades artísticas
- Presenteie a criança com um livro que inspire aventuras ao ar livre, como "As Aventuras de Tom Sawyer"ou "O Livro da Selva"
- Faça uma horta de legumes ou de temperos, seja no quintal ou na varanda do prédio
Richard:
Veja, não estou dizendo que remédios como a Ritalina (usado para o
tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, por
exemplo) são ruins. Eles podem ser muito úteis para alguns casos.
Mas quando se têm escolas nos EUA em que 30% dos meninos tomam
Ritalina, sabemos que algo não está certo. E os pediatras sabem disso.
[O Brasil é o segundo maior consumidor do medicamento no mundo, com
cerca de 2 milhões de caixas vendidas em 2010 - um aumento de 775% na
última década, segundo a Anvisa.]
BBC Brasil: Sabem mesmo?
Richard:
Acredito que muitos estão passando a se dar conta disso. E vejo cada
vez mais profissionais começando a prescrever "brincar no parque".
Prescrever mesmo, por escrito.
Em algumas partes dos EUA, por exemplo, associações de médicos
começaram a usar dados com mapeamento das áreas verdes de suas cidades.
Assim, dizem para os pais "tem um boques a duas quadras da sua casa,
portanto não há desculpas para levar seu filho lá duas vezes por
semana."
BBC Brasil: E o que exatamente acontece com essas crianças que são
taxadas, corretamente ou não, de hiperativas quando elas passam mais
tempo em áreas verdes.
Richard:
Essa mudança costuma ser visível e rápida. Vou dar um bom exemplo.
Recebo muitos comentários de professores que passaram a incluir mais
passeios ao ar livre em suas turmas.
E, juro, perdi a conta de quantos professores me falaram exatamente a
mesma coisa, com praticamente as mesmas palavras: "Richard, é
impressionante. Meu aluno que é encrenqueiro na classe se transforma no
líder quando estamos no parque." E o que estamos fazendo com essas
crianças? Dando Ritalina.
BBC Brasil: Isso também mostra como o papel da escola é importante, não?
Richard:
Com certeza. Eu diria inclusive que em grandes cidades, as escolas
devem liderar o caminho de resgate do convívio das crianças com a
natureza, já que as áreas verdes são poucas e a vida dos pais é corrida.
E há estudos mostrando que uma educação baseada no meio ambiente
melhora o aprendizado não somente em áreas ligadas à ciências da terra,
por exemplo, mas também em idiomas, matemática, história.
BBC Brasil: Mas como isso acontece?
Richard:
Há muitos exemplos. São alunos aprendendo a somar ou dividir na beira
de lagos. São escolas que exploram as áreas verdes não só em suas
dependências mas também no bairro.
Há dados impressionantes mostrando como alunos de escolas baseadas no
meio ambiente se saem melhor em testes tradicionais e também desenvolvem
melhor a capacidade de ter um pensamento crítico, de solucionar
problemas, de tomar decisões, entre outras características cognitivas.
BBC Brasil: E esses impactos positivos se dão sempre que a criança tem mais contato com a natureza, seja na escola ou não?
Richard:
Exato. Pegue os exemplos dos parquinhos. Há dois tipos: os com
brinquedos estruturados (escorregador, balanço, etc) e os chamados
"playground de aventuras", em que em vez dos pisos de cimentos, temos
terra, areia, grama; e não tem brinquedos prontos, e sim tocos de
madeiras, morros e afins.
Pesquisas mostraram que crianças brincando nesse playground natural
tinha uma propensão muito maior de inventar seus próprios jogos, de
convidar outras crianças para a brincadeira, inclusive crianças de
outras idades e outros gêneros, e de brincar de uma maneira mais
cooperativa.
É isso que a natureza proporciona para as crianças.
BBC Brasil: Você cita muita crianças pequenas. Para uma mais velha,
com 10 ou 11 anos por exemplo, é tarde demais para reconquistar esse
convívio com o ambiente natural?
Richard:
De jeito nenhum. Nunca é tarde demais. É claro que o ideal seria
começar isso desde de bebê até os 3 anos. Mas o nosso cérebro tem o que
se chama de plasticidade. E graças a ela abrem-se janelas para mudar o
caminhos neurológicos que usamos para aprender ou perceber coisas novas
em qualquer idade.
BBC Brasil: A poucas quadras daqui, há uma área (na Rua Augusta,
centro de São Paulo) que virou alvo de disputa e que pode tanto virar um
grande empreendimento imobiliário como um parque municipal. Certamente
há disputas assim em todas as grandes cidades do mundo. Como o sr. se
posiciona diante dessas situações?
Richard:
É preciso ter uma visão pragmática. Por isso eu diria que o prefeito
precisa colocar na ponta do lápis. Quanto a cidade gasta com saúde
pública, com problemas como síndromes respiratórias, sedentarismo e
saúde mental? Uma área verde no meio da cidade pode ajudar nisso.
Outro ponto: já está mais que provado que quando há um parque natural
em uma determinada área, todo o entorno é valorizado, elevando o valor
de mercado das propriedades ao redor. Isso também precisa entrar na
conta. Aliás, a gestão municipal pode fazer muita diferença.
BBC Brasil: Por quê?
Richard:
Eu queria lançar um desafio para o prefeito de São Paulo, como eu fiz
na China. A cidade tem metas de ser uma cidade rica em áreas verdes?
Isso pode entrar no marketing da cidade, para atrair grandes empresas,
por exemplo.
Quais as metas de São Paulo ou de outras cidades no Brasil para ter
mais parques, áreas de caminhadas, playground naturais, trilhas?
BBC Brasil: O sr. acha que isso hoje não é encarado como prioridade?
Richard:
Bem longe disso. Um parque é encarado como uma coisa a mais para se
ter, algo extra, um mimo. Enquanto pensarmos assim, nada vai mudar.
Porque a verdade é que uma área verde não é algo legal para se ter, é
algo do qual todos precisam. É parte da nossa humanidade ter contato com
a natureza, é parte dos direitos humanos básicos, como muitos órgãos
internacionais já reconheceram. Por isso não pode ser negado pelas
autoridades.
BBC Brasil: Além das autoridades e das escolas, qual o papel dos pais nessa retomada de contato das crianças com a natureza?
Richard:
Como em tudo, os pais precisam ser exemplos. Precisam também usufruir
da natureza - mesmo porque isso é benéfico para todas as idades.
Precisam proporcionar passeios ao ar livre para as crianças, mostrar a
importância desse contato...
BBC Brasil: Mas será que os pais que vivem dias corridos nas cidades dão conta disso também?
Richard:
É importante é deixar claro que não é preciso ir acampar toda a semana,
fazer trilhas na mata todo dia. O convívio com a natureza se dá também
em atos simples, compatíveis com o dia a dia corrido das famílias
atuais.
É ter uma hortinha em casa ou até na varanda do apartamento, é
aproveitar áreas ao ar livre como quadras esportivas, quando não houver
um super parque perto de casa. E até mesmo ler "Tom Sawyer" ou outros
livros que despertem o encantamento das crianças com a natureza.
BBC BRASIL / TERRA
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