Diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Brasil e
outros dez países, o economista Otaviano Canuto diz que há "margens
enormes" para reduzir a sonegação fiscal no país e ampliar os impostos
sobre heranças, imóveis e a renda dos brasileiros mais ricos.
Em entrevista à
BBC Brasil
, Canuto afirma que a ascensão política dos mais pobres cria condições
para a aprovação das medidas, que reforçariam o caixa do governo.
Ex-professor de economia da Unicamp, Canuto passou quase uma década no
Banco Mundial, onde exerceu os postos de vice-presidente, diretor
executivo e conselheiro sobre os Brics (bloco formado por Brasil,
Rússia, China, Índia e África do Sul). Ele assumiu o posto no FMI em
2015.
De seu escritório em Washington, nos Estados Unidos, Canuto concedeu a
seguinte entrevista à BBC Brasil.
BBC Brasil -
Quais devem ser as prioridades do governo Michel Temer na economia?
Otaviano Canuto -
Lidar com a trajetória atual de endividamento e de déficits fiscais,
tirando-as do curso de alta explosiva, e encaminhar uma série de
reformas, como a da previdência, a desvinculação de receitas e a
desindexação de alguns gastos. Isso poderia iniciar a recuperação da
economia brasileira ao sensibilizar agentes econômicos a desengavetar
programas de recuperação do emprego, de gastos e investimentos.
No médio e longo prazo, uma agenda para o aumento de produtividade e de
capacidade de crescimento da economia brasileira. Destaco a retomada do
programa de concessões e o aumento da participação privada nos serviços
de infraestrutura e investimentos. Também a revisão do sistema
tributário, particularmente itens que são complexos e custosos até para
cumprir com eles, caso do ICMS e do PIS-Cofins.
Outro ponto que tem sido mencionado pelo ministro (da Fazenda Henrique)
Meirelles é o reconhecimento de contratos resultados de negociações
trabalhistas como sobrepujando outras regras trabalhistas mais rígidas.
Isso vai aumentar a flexibilidade no mercado de trabalho e reduzir a
rigidez que atrapalha a geração de empregos.
BBC Brasil -
É viável pensar em medidas complexas como a reforma da previdência e a
desvinculação de receitas levando em conta a curta duração do governo e
o momento tumultuado?
Canuto -
O governo pode ser curto, mas a percepção da urgência de se proceder
com essa agenda é muito elevada. E há naturalmente uma transmissão (a
Temer) do apoio demonstrado nesse processo (de impeachment). Não será
para sempre, mas desde que haja um plano claro e um convencimento da
classe política como um todo, não vejo por que não. Todo mundo está
cansado da crise e há percepção clara de que não há como sair dela sem
desenvolver uma agenda como essa.
BBC Brasil -
Como o orçamento brasileiro se tornou tão rígido? É algo específico do Brasil?
Canuto -
O grau de rigidez, sim. Imaginou-se que por decreto, lei ou por
preceito constitucional você conseguiria fazer um desejo se transformar
em realidade. Então o nosso longo e tenebroso legado de exclusão social,
desigualdade e pobreza acabou induzindo uma correta expressão de
aspirações sob várias formas, inclusive no orçamento, sem que ao mesmo
tempo fosse buscado espaço para esses anseios no corte e eliminação de
privilégios.
Como não aconteceu esse acerto de contas, o gasto público no Brasil
entrou numa trajetória crescente. Mesmo quando o PIB brasileiro estava
crescendo bem, a proporção do gasto público no PIB continuou crescendo.
Estabeleceram-se indexações como tentativas equivocadas de proteger o
gasto sem levar em conta a qualidade, e isso produz distorções.
Veja a vinculação de gastos públicos nos Estados para educação e saúde.
Os Estados têm configurações diferentes de população – em alguns casos a
população é mais velha e as necessidades não encaixam na média do país.
Só que, como está fixado, gasta-se de qualquer maneira.
BBC Brasil -
A obra do economista Thomas Piketty gerou um debate mundial sobre a
taxação dos mais ricos. Há margem no Brasil para a iniciativa?
Canuto -
O problema da evasão fiscal e da arbitragem dos sistemas tributários é
um drama universal. A configuração mais justa nem sempre é a mais
eficaz, porque a tributação sobre alguns segmentos é facilmente evasada.
É um problema enfrentado desde os membros União Europeia e que também
afeta o Brasil. Ainda assim, há margens enormes.
Por exemplo: a tributação sobre o patrimônio imobiliário é justificável
na medida em que o patrimônio físico de casas, terrenos, às vezes se
valoriza sem que haja nenhum mérito por isso. Nada mais naturalmente
taxável do que isso. O mesmo vale para a taxação sobre heranças, sem
eliminá-las – é algo que se justifica do ponto de vista de mérito.
Além disso, esses tipos de taxações são de evasão mais difícil. São
casos óbvios em que a tributação maior é justificável pela eficácia e
por razões de equidade. Também tem que haver maior taxação sobre a renda
dos mais ricos, fechando os buracos através dos quais eles possam
evitar ter suas rendas classificadas assim.
BBC Brasil -
Há maturidade para aprovação disso no Brasil?
Canuto -
A pergunta que eu faria é se existe disposição política e uma
configuração de forças políticas nessa direção. Eu diria que sim, na
medida em que a pressão popular não tende a desaparecer ou voltar a ser
mínima como no passado. A expressão da classe média baixa, dos segmentos
abaixo do topo da pirâmide veio para as ruas no sentido figurado e não
volta para dentro de casa.
BBC Brasil -
Quais os legados deixados pelos governos do PT?
Canuto -
Um deles é a percepção de que existem certos tipos de políticas sociais
que são eficazes no combate à pobreza extrema com baixíssimo custo,
cujo maior exemplo é o Bolsa Família, mas não apenas. Isso é uma lição
fundamental por conta dos diversos efeitos secundários que programas
desse tipo trazem, como o empoderamento das mulheres e dos pobres. São
um baita avanço em relação a todos os tipos de políticas sociais do
passado e vieram para ficar.
Um segundo legado é a lição clara de como vale a pena preservar uma
estrutura de responsabilidade macroeconômica na gestão do país. A
experiência do governo do PT mostrou claramente o grande benefício para o
governo e o país da preservação da estrutura de responsabilidade
herdada e mostrou a ruptura que pode acontecer quando você se afasta
dela.
E o terceiro legado é o de que o regime econômico anterior, muito
voltado para dentro, chegou a sua exaustão. A ideia de que a economia
brasileira pode crescer simplesmente autopropelida pelo consumo chegou
no limite. O que coloca agora a percepção clara de que há a necessidade
de se voltar para um aumento de produtividade.
BBC Brasil -
Como o avanço social que houve no Brasil na última década se compara com o de países com características semelhantes?
Canuto -
Ele foi alto, mas não foi o único. Há um fenômeno bem abrangente, desde
o início do último milênio, de redução da pobreza em termos relativos
na América Latina, em boa parte da África, na Europa Oriental e Ásia.
As explicações são diferentes. No caso da Ásia, essa redução se deu
particularmente a partir da inserção no aparelho produtivo – as pessoas
foram tiradas de atividades de subsistência para trabalhar em atividades
mais modernas, em geral nas cidades, associadas à indústria
manufatureira.
No caso da América Latina tem muito a ver com uma melhora substancial
nas políticas públicas, com uma mudança no eixo do poder político que
favoreceu ou deu voz grande a pessoas do baixo da pirâmide. A educação
dos pobres brasileiros nunca foi uma grande prioridade da elite
brasileira – também porque ela nunca precisou, muito pelo contrário.
A partir do momento em que você tem universalização de meios de
comunicação, você passa a ter aspirações, e a referência de que sim, se
podem mudar as coisas. A pressão da base da pirâmide hoje é uma força
política que não pode mais ser ignorada.
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